segunda-feira, 18 de junho de 2012

domingo, 29 de julho de 2007

Joio & trigo


fruto que coabita comigo,
amigo e inimigo,
joio e trigo.

Lindolf Bell

Manhã.

Há metafísica bastante em não pensar em nada.
Fernando Pessoa

I

Tens a forma
de um poema
obtuso,
lâmina ceifando a noite.

Tens a face
boreal e clara
– aurora repentina
circundando a terra.

II

Te sei presumida.
Adivinho-te bela,
enfeitiçada.
Teu riso longe ecoa
dentro do coração
tão vazio.
Teu vazio me corrompe.
Aceito-te mansa e meiga
– qual mesmo o teu nome?
Tua terra, arado, homens,
vegetação absurda.
Teu seio, sangue,
mel e lua.
Amo-te feito noite.
Amo-te feito vida.


III

Teu cabelo sobre a fronte
– rosto pálido em linha reta –
suspenso como em surpresa,
veste a verdade em círculos,
sonha versos e metafísica
e pelos vértices da história,
tempo e vento são realidade:
comes frutos e trigo,
em pão convertido,
massa e sal misturados,
alimentando as mãos e o ventre.
Tens motivos para sobreviver.
Nasceram do milagre da escuridão,
vertendo simbolismos e palavras,
como sentidos do medo e da mágoa.

Alento e saudade,
sopro sobre o tempo.
Toque – joio colhido.
A dispersão das palavras iguais
fazem pleno teu sentido renovado.

Chama crepitante
– teu verso composto no escuro –
nascimento/parto sem dor.

Aproximam-se as horas
e retornam sobre si mesmas.


Guirlanda.

Uma tarde
é suficiente para ficar louco

Roberto Piva

I

Dedos infringiram a noite,
tatuando espécie de guizos
no hemisfério.
Norte e sul cruzam-se atônitos,
bocas profanando o templo.
Languidez perpassando
o peito de sussurros,
projetando-se
no espaço redescoberto.


II

Somos tais pássaros noturnos,
vagando feito loucos.
Asas abertas,
reatando nós invisíveis.
E, transeuntes do presente,
vivemos, corpos dados,
almas dadas,
no silêncio.


Nós somos múltiplos.

E te chamam pecado.
Jorge de Lima

I

Cidade erigida sobre a pedra
rosto semilunar e bravio,
negação do mistério.
O olhar chama-me ao centro do universo:
habitação de felinos
enrustidos em celofane.
Cinqüenta anos de solitude
incrustados em monotonia e perífrases.
Anéis de jade devolvem o poder
aos bruxos pré-medievais.
Ribombam as catedrais da cidade beira-mar,
sacrílega e adormecida.
Teu culto é hemisférico e platônico.
Tua alma tangida pelo breu.


II

Voz ouvida dentro da noite vinda de qualquer parte acima das nuvens. Bico de ave disfarçado na ramagem. Sintonia de imagens e palavras, carências de olfato e vibrações saciadas repentinamente sob o olhar do sol. Perfume anestésico arrebanhando meus sentidos. Redescubro num instante minha fome emudecida. Temos tempo. Temos todo tempo que precisamos. Possuímos um ao outro. Temos o prazer enjaulado em nossa mente. Libertos, contorcemo-nos no espaço inoculado. Prefiro o dia de hoje ao mesmo dois anos atrás. Prefiro a mim hoje que eu mesma dois anos atrás. O resto é veneno. O futuro será lancinante.


III

O grito é delírio.
Percebo que temos mais
do que jamais sonhamos.
Nossos corpos trafegam a trajetória do impossível.
Nossos sentidos estão embebidos em chá de camomila.
Loucura passional.
Corpo possuído por infinitas garras
saídas de um abismo.
Pira enfeitiçando
um poema que não termina.



Afrodite.

Redesenho
o sopro fácil e diurno:
dias antigos e alongados
em tua forma, hoje, de ser amado
– por que amado? – e ser tão difuso
quanto a retina de teus olhos.
Meu sonho, poeta, é minha sina,
pecado mortal, pecado carnal, pecado nenhum.


Arco incompleto.


As asas estão prontas. Temos sempre justificativa para cometer um crime. O céu está coberto. Em teu vôo, o movimento abruptamente interrompido. A noite esparge claridade. Em teu repouso, as asas estão partidas. Principiar a fuga, impossível. Teu gesto, circular, repetindo, incansavelmente, a perfeição de teu braço. O espaço redobra-se sobre teu peito. Teu rosto torna-se visível. O amor é suficiente.



Terminal.

A vida é que me aprendeu.

Olga Savary

No secreto túnel
permeias os obstáculos
– um livro escondido,
a cara no chão.
Sacas revólveres
dentro do quarto
e para mim dizes:
– Bom dia.
O papel debaixo do vaso
tem um verso que não li.
O verde oculta meu poema.
E a caixa de sonhos,
quadrada,
tem cubos de gelo
para teu uísque.
Guardas o mel em compotas
das frutas plantadas em casa.
E teu silêncio é mórbido,
Cristalfonte,
de onde emergir é impossível.
Meus livros
– teus livros –
emprateleirados
sofrem prisão sem motivo.
Quero abrir-te em folhas de estanho
e ter teu sorriso finalmente lapidado.
Teu desígnio é a morte.
Em tumbas de sacrilégio.
Foice manchada no escuro,
face marcada de tédio.
O som de cristal
na parede de vidro
tomba teu mistério por terra.
És antiga e enclausurada.
Moí teus desejos
com pilão estranho.
Teus passos já não se ouvem mais.
Roubei-te a forma,
prazer e sorriso.
Pintei-te num quadro,
para sempre, deformada.
Queres ouvir meu segredo?
Ele não é igual ao teu.
É frágil gota de sangue
coagulada em frente ao espelho.
Nasci antes de ti
e tua vinda foi o fim do acalanto
que, menina, fiz-te ninar.
Os leões coroados,
na sala,
guardavam teu pasto e alimento.
Joio e trigo
resolvi chamar-te
para tudo que tinhas
e não tinhas mais.
Balaios de gatos miando,
mesa posta em contemplação,
cálices vertidos de vinho:
nódoa em tua roupa usada.
Queres o mistério da alma?
Pois te dou sem embargo de mim.
Todas as coisas possíveis estão aqui.
Tapete cinza para meus pés,
cadeiras respaldadas em silêncio.
Quero brincar com teu passado
e fazer-te crer
que tudo não passou de engano.
Enganei-me e enganei a ti.
Sou espião de tua alcova.
Teu riso, Cristalfonte,
é pérfido e distante.
Que esperas de mim?
A arca da aliança está desfeita.
Sobre ela pássaros pousaram à noite.
E amanheço sem distúrbios na alma.
Ligo o interfone e te chamo:
– Mulher, acorda de teu sono.
Ouve-se a rebentação ao longe
– o mar não é o mesmo.
Produz marulhos dissonantes
e, em casa,
dormes feito paquiderme.
Cestas e castiçais sem velas
perfilados na estante,
conchas, areia, tudo dentro de potes:
querias guardar teus segredos?
Quebrei-os todos, sem saber.
Tua casa é o claustro
onde comes em silêncio,
vagas noturnamente em desespero:
tua solidão é imensa e irreversível.

Tua memória – um pouco de chuva
sobre o jardim.
Jardim de apolináceas.
Mero recanto de medo.
Sofres? Sofres comigo.
Porque invadi tua morada.
Deitei-me sobre leito frio
e não fui bem-vinda.
Abri os livros – aprisionados –
e li os versos de tua ausência.
Loucura dissimulada em cantos
de Nefertiti ao silêncio da noite.
A lua em eclipse
– neste dia aziago –
afeta-te como uma praga celeste.
Não há explicações,
Cristalfonte,
apenas segredos.
As faces estão hirtas
e tu falas sozinha.
Morreram antes de ti,
e tu que nem sabias da morte.
Vida – em guardados de avó.
Roupas embebidas de naftalina.
Vestir – ato impensado
após o banho de cânfora
– faz-te mais velha que tu mesma,
que tens a idade da pedra.
Fossilizada e eterna,
perdida e dissipada.
Teu hino, Cristalfonte,
é morte.
Boi no repasto da tarde,
boi preto, manso e sem saudade.
As cadeiras gemem,
o silêncio suspira,
ouviste?
Não, nada.
Apenas tua sombra vaga
entre escombros.
E a visão pelas janelas
do fundo da casa é curta.
Tua verdade é a mentira.


Interlúdios.

I

O toque da pedra: limite.


II

Grandes são teus olhos no silêncio,
auscultando a face alva e noturna,
ocultando/revelando o impossível.


III

O lago
rebrilha a luz
– transparente
e dilúcida
membrana.


IV

A forma
no tempo
guarda sementes
e segredos.
Baobás crescem
da alma.
Brotam em paz
e silêncio.
Vivem em eternidade.


Licor das horas.

I

Amor
trave dilacerante
dentro da noite.
Face ondulada
e cinzenta
sob névoas e absinto.
Calor das mãos – suores e prantos.
Corte à faca, rente e profundo
junto ao peito
no coração.


II

Ritos desdobrados
e unívocos
dos dois lados do copo.
O líquido inconsciente
donde brotam as penumbras
resvala sobre a pele.
Tenho memória de tudo:
incêndios e mares
onde velejam naus
mitificando o sonho
através do vidro.


III

Destruímos os sinos
ensurdecendo a terra
seus alforjes e cambraias.
Amaldiçoamos o tempo
maldizendo de nós
em prolongados uivos
sobre o descampado
onde ecoam as florestas
que ali estavam.
E arrancamos as sementes híbridas
para o plantio das horas.


IV

São noites
enclausuradas ou repentinas
desfeitas em pó.
São poucos os beijos
diante da impávida face visceral.
Beijaríamos muito mais
se fosse permitido.
Amaríamos
se nos fosse dado a chance.
As mãos dilapidam o horóscopo,
astrolábio de movimentos
fermentando a aguda fronte aromática.
As vestes magnetizadas pelo odor
revelam o desejo,
criando o mistério de pertencer-te.



Crisálida.

La presencia sin nombre me rodea.
Octavio Paz

Escrever não é ofício; é miragem. Miro-te e alcanço-te como se fosse um fruto. Delicioso e ardente. Temos tempo regressivo. O futuro é uma abóbora. Imaginar-te, sempre instigante. Cresces como um gigante. Imagina qual o particípio irregular de arrebatar. Rapto. Tens dedos de feiticeiro. Tudo que tocas se incendeia. Vejo-me acesa com todos os fogos em explosão. E à medida que se queimam todos os troncos, deixam brasa, convertendo-se em cinza. Digo que tens o dom de queimar, tanto a superfície como o lago subterrâneo. Tenho-te dentro de mim como coisa que não se doma. Que se avoluma e toma forma. Não temo tua ausência, pois creio que jamais estarás ausente. Mitifico-te além-vida. Sacralizo-te em mim. Assim amo sem saber, indisciplinada menina que zomba dos carinhos e faz deles coisas sublimes. Isto, como prova ou testemunho de que estamos aqui e vivos.



Invenções do tempo.

Tous ses caprices sont faits.
Paul Éluard

I

Descreve a suavidade das linhas oblíquas
em teu sono cálido e permanente,
figura despida em meu leito,
teu sorriso, corpo e mãos presentes.
Toco a palma das encostas
elevando tua alma da penumbra,
tua forma lapidada,
a se transformar com a luz.


II

Distante da tua imagem
aqui posta em sossego
– mais do que tudo, silêncio –
espero o sinal de partida
como navio que aguarda levantarem âncora.
Saio de minha casa
abandonando tudo.
Deixo para ti,
meu sono de profeta da clandestinidade.
Trago-te de volta ao que eras.



III

A casa resplandece.
Resplandecem os olhos.
Corre a lama serra abaixo.
Pássaros bicam as nuvens da silenciosa manhã.
Que esperemos que aconteça?
Que anoiteça e amanheça.


IV

Passo de um dia a outro,
braço estendido em direção da ventania,
percorrendo trajetos sobre o pântano.
Circulamos a estratosfera
ponderando a vida
– para, sempre que possível, retornar.


V

Teu silêncio descobre-se a si mesmo.

Não é o silêncio que me descobre.
Antes, descubro eu o silêncio.
Teu hemisfério – teu grito ao longe
a atravessar os caminhos.


VI

Desapareceram os meninos da casa. Ficou rastro por onde passaram e de repente, nada mais se movia. A ordem das coisas, inalterada, respirando a imobilidade do tato. As horas suspenderam os gestos e a penumbra tomou conta de tudo. Caía noite e chuva. O rosto debaixo do rosto, as mãos guardando retratos, o tempo não mais passava. A solidez da memória, estagnada visão de fantasmas, essa forma de existir ausente. Fecharam a porta: nada mais havia.


VII

Não há canto verdadeiro, sibilante e infinito, como noite iluminada de dentro, do meio da rua, ou aqui, em mar alto, perdidos, nós, em névoas ocasionais. Claridade entrevista, através dos panos da janela deste quarto, nesta manhã bem-vinda. Assim que desperte, transparecerão os signos.



VIII

A concretude de coisas fictas
diante das velas reacendendo a carne:
véus pálidos e dispersos
fazem o sono heróico,
a poesia, eterna.


IX

A sombra da borboleta
na parede
desliza pelo ventre da tarde.
Pousa a lentidão das asas entreabertas
sobre os poros dilatados do silêncio.


X

Jamais chegar a existir – como faca que rasga a carne. Jamais romper a eternidade. Colocar as mãos sobre o teto e sorrir. Jamais recriar. Deixar que fiquem a vida e o tempo como sinais da tua passagem. Somos imortais.


XI

Perseguir o vazio da imaginação, talhar a forma de tua imagem, refazer o tempo. O que és, transformar – atingir.


XII

Determinaremos o momento de partida. As coisas que estavam, deixarão de estar e subitamente, haverão mudado. Teremos novas mãos e uma religiosidade naquilo que ficou.


XIII

Escancaramos as fortalezas
em que nos vemos aprisionados
lançando bolas de fogo
nas catapultas do medo.
Apontamos o horizonte
como linha possível.
Desenho, a partir desse movimento,
a órbita da esfera terrestre,
na claridade dos passos.


XIV

Permaneço em vigília,
retendo teu olhar na concha vazia
das mãos.


XV

Nem bem começamos. Nem sequer iniciamos a percorrer a lâmina do destino. Essa terra tem nossos segredos. E fechei sua voz em arca antiga. Emudeci. Trouxe-lhe fios de meu cabelo para tecer um manto para seus pés. Que resta então? Viver.


XVI

Dizer a última palavra, mesmo sem despedir-se. Calar-se diante de meu rosto dilacerado que trincou com teu movimento resoluto. Ocultar a dor para que jamais seja percebida.


XVII

Sair da abóbada,
todas as vontades feitas,
renumerar as faces, como máscaras perfeitas,
penduradas sobre o caos.
Lapidar o gênesis,
ateando fogo às imagens do Universo.


SACERDÓCIO DA POESIA
Olga Savary

Poesia é horizonte de viagem, é Mare Magnum. As modernas formas de comunicação, a TV por exemplo, representam uma democracia imediatista e mais limitada, minimizam a palavra e apequenam e espartilham o texto. Poesia é ara, é altar de resistência da linguagem. É por isso que as pessoas se dão ao trabalho de sair de casa, atravessam a cidade para se reunirem em locais diversos e distantes um dos outros, como em sociedades secretas, sagradas, para ouvir poetas, que – quando bons – são o baluarte do bom som das palavras. Além da reflexão sobre os problemas humanos que as palavras suscitam. Depois disso, temos a certeza de que, após estas duas horas de espetáculo com a palavra, por assim dizer, estas mesmas pessoas voltarão para casa mais leves, mais felizes e, ao mesmo tempo, inquietadas pela reflexão e imagens que a palavra lhes despertou. E pacificadas pelo conforto que esta mesma palavra dá. Vale dizer que voltarão melhores.
Poesia: magia prolixa, progresso do sol, não se constrói a partir de certezas, mas sim através das interrogações e esquadrinhamentos que, estes sim, nos fazem crescer. O poema é feito pelo poeta e, se todos os que estão ouvindo seu texto falam a mesma língua e estão na mesma sintonia, poderão estar entendendo em uníssono o poema. Isso é compartilhar do mesmo prazer. da mesma dor, às vezes, é comunhão. É uma ritualização do sagrado em nós, como numa cerimônia religiosa. Todo bom poeta sabe do que estou falando. Todo poeta que se preza trata a poesia como algo sagrado, como religião. A gente sabe que a origem da palavra religião quer dizer religare, é o ligar entre os seres, comunhão mesmo, no sentido mais alto da palavra.
Como conheço bem e acompanho o trabalho de Thereza Christina Rocque da Motta há muitos anos, sei que é essa dedicação quase mística que ela empenha em sua obra. Sempre foi e tenho certeza que assim sempre será. Bom poeta jamais tratará a poesia como mulher de malandro. Acarinha, deita-a em berço esplêndido, faz amor com a poesia. Mas aí vocês vão perguntar como ter certeza de que todos numa assistência estão entendendo o poema da mesma forma. Diríamos que é melhor que não seja assim, quer dizer, que não é necessário uma unanimidade de entendimento. Pois Nelson Rodrigues já não dizia que toda unanimidade é burra? Isto é para dizer que o melhor poema é aquele que se presta a várias interpretações. Porque o poema se constrói na cabeça de cada leitor. Assim, partindo da mesma língua, da mesma cultura, da mesma escritura, o poema pode – e deve – ser diverso na minha cabeça, na sua, na de qualquer cidadão, mesmo aqueles que não têm a familiaridade de cotidiano com a poesia.
Embora partindo de uma experiência individual, o poeta é universal, do momento que é propagador de uma visão do mundo absolutamente única. E aí fala por todos nós. Assim, falando do poeta em geral e, particularmente, da poeta aqui estudada, diria que o eu poético de Thereza Christina Rocque da Motta se integra e desintegra na própria poesia, de tal forma o criador não só vive a vida, mas por ela é vivido. A poeta, esta inspiradíssima e consciente, como deve ser todo poeta, é um belo exemplo de tudo o que se falou acima. Dessa maneira, não só constrói o poema, como também por ele ela é construída. E a vida assina em baixo.
Para um amado possível ou impossível, mas provavelmente bem adaptada a cantar a poesia, a poeta fantasia-se de rainha para que se brinque com ela, faz-se de bailarina para as noites de insônia, despindo todos os trajes, tornando a colocá-los e fazendo de conta ser mil mulheres diferentes, para que se tente descobrir-lhe a verdadeira face. Depois, cansada de brincar, lava do rosto todas as máscaras do sonho. Mostra-se a poeta serena e até sorri, doando-se à poesia ao descobrir esta a face que se torna o reflexo da poeta. Mimetismo poético, poeta e poesia são a mesma coisa, amalgamadas.
Também usa de outros poetas, que a ela dedicaram poemas, Thereza Christina foi analisada por importantes críticos de poesia. Em Relógio de Sol, diz o apresentador Carlos Burlamáqui Köpke que sua poesia se constitui num discurso caleidoscópico, onde cada fragmento revela a lembrança de um rosto, a revisitação de uma cidade, o mistério da noite, enfim, fragmentos filtrados de seus poemas, tornando-os autônomos entre si, mas também marcados de unidade existencial. Significativos e estetizantes, os poemas de Thereza Christina traduzem natureza profundamente feminina, poemas que se fazem valores permanentes da autora para a Poesia e da Poesia para a existência. Dela diz a também poeta Dora Ferreira da Silva, que é autora de poemas lunares, jorrando da Lua incandescida pelo Sol, de teor cósmico e ao mesmo tempo interior, alquimia de sentimento e paisagem, luz e sombra, microcosmo refletindo o macrocosmo, num jogo forte, espelho de luz vivíssima. A postura essencial de seus poemas poderia ser traduzida na imagem da orante intemporal, impregnada de fé na beleza, através de sofrimento e frêmito.
De si mesmo, diz a poeta, em Sentinela: Calo-me/ se for preciso/ para ouvir/ o inaudível./ E dentro do silêncio / turbado/ jorram meus olhos/ a infinitude que não vêem. Diz a poeta, em Sabbath: De fato/o que sei/não importa./ Importa/ o que ainda não sei. Assim é que o poeta parece destinado a salvar o real, o real que está nos sonhando. Frances Ponge é quem diz que o mundo funciona mal e o artista, o poeta é quem tem a tarefa de o reparar na sua oficina de criação, à maneira do reparar máquinas ou automóveis por exemplo, peças ou trechos do mundo. Verdade é que, se o mundo tem conserto, quem vai se encarregar disso será o criador, o ser mais denso de humanidade. Nesta poesia, descobre-se o vigor das palavras, imagens, oxímoros, metáforas, formulações, ritmos, fórmulas, acontecimentos da alma, coração e mente, figuras da linguagem altaneira a nos comover, nos fazer pensar e sem as quais nosso mundo seria mais vazio e pobre.
Um grande poeta é quem opera isso, presentificando-se e presenteando-nos com esta por vezes trágica, mas fulgurante visão do mundo. Poesia que é chamamento, gesto, solidão, solidariedade, apelo, emoção. Arte poética é visão em estado de alerta, consciência pura, estado de emergência, memória descarnada, desencavada. Uma sobrevivência. Para quem faz e para quem a consome. Falamos todos nós, poetas e amantes da poesia, como se ela fosse uma pessoa, persona ou personagem. Assim poesia é real. E o ritual com que a tratamos, confere-lhe certa sacralidade demiúrgica.
Poesia cria, pode destruir, por ter vida própria após criada. Cria, destrói, recria mundos e o mundo. O poema é genesíaco e é litúrgico. E o poeta, através da poesia, sai do eu individual, personalizado, para o eu universal. É preciso ter pela poesia uma religiosidade, um ato de fé racional sim, mas igualmente mágico, místico, um ato de fé de desejo, um ato de fé até diria sensual. Na vida, nada funciona se não houver essa gana, vontade, desejo, sensualidade. Poesia, vocação para o incêndio. Incêndio não criminoso, mas incêndio possível, saudável, desejado, no sentido de paixão.
De Thereza Christina Rocque da Motta, fala Carlos Felipe Moisés, poeta e crítico: Areal não esconde seu fascínio pela utopia surrealista. Por isso, a cada poema, ou a cada desdobramento do mesmo poema, uma nova dimensão de sonho e ousadia se acrescenta ao espaço comum habitado pelos amantes, como que mergulhados em desabalada vertigem: “Atinges o momento do ciclone,/ a órbita aberta do planeta.” A vertigem, porém, se dá apenas enquanto proposta de vida, não enquanto ato poético. A escrita de Thereza Christina, ao contrário da escrita automática dos surrealistas, não busca a abundância e o desbordamento, mas a contenção, metáfora do cioso controle que os amantes pretendem exercer sobre o incontrolável da experiência amorosa. É que o amor absoluto, o de Areal, o surrealista ou o mais antigo, se alimenta sempre de paradoxos.
Ainda, de Areal, o escritor e crítico Luiz Carlos Lisboa diz: A diferença entre omissão e silêncio nessa arte de viver que é a poesia, diz tudo que se precisa saber a respeito da beleza e do descobridor da beleza. O poeta, o leitor da poesia, o homem inocente, no melhor sentido da palavra, é o aprendiz que não quer ser mestre, porque descobriu (quando sabe que descobriu), que a graça da vida e a paixão sem alvo que move o religioso e o poeta, são filhas desse aprender eterno que sustenta o homem no infinito presente, que já se chamou Walhala, nirvana, paraíso ou wu-vei. A relação mestre-discípulo que o pensamento autoritário modificou no Ocidente, é aqui, como no princípio, apenas o aprendizado da percepção, da alegria de obedecer em plena liberdade, sendo sucessivamente aquele que ensina e aquele que aprende, na plena delícia de estar vivo e desperto.
A poesia que se revela como supressão inspirada do supérfluo, com absoluta inexistência de esforço, mas com imenso poder de esclarecimento, é a matéria-prima que falta num mundo que se preocupa demais com petróleo, carvão e plutônio, sem o que se pode com certeza viver. A poesia de Thereza Christina faz um acordo com o acaso e se constrói nas esperas e nos vazios que geram a criação. Seu trabalho é parente daquilo a que se referia Chuang-Tse, quando disse: O verdadeiro sábio prega a doutrina sem palavras. Não há uma poesia que alude, apenas e uma outra que discursa e se explica. Uma é poesia, a outra não é nada. Esta de Thereza Christina é daquelas que são atraídas e antecipadas pelas alusões que se definem como material poético. Nela estão os vazio que são como as pausas na música e que, como elas, distribuem a beleza e preparam o coração.
Que fale a poesia da própria autora, que ao falar de outra coisa, fala com certeza da poesia, da vida:

Tens a face
boreal e clara
– aurora repentina
circundando a terra.
(...)
Te sei presumida.
Adivinho-te bela,
enfeitiçada.
Teu riso longe ecoa
dentro do coração
tão vazio.
Teu vazio me corrompe.
Aceito-te mansa e meiga
– qual mesmo o teu nome?
Tua terra, arado, homens,
vegetação absurda.
Teu seio, sangue,
mel e lua.
Amo-te feito noite.
Amo-te feito vida.

in Joio & trigo, 1982.

Apresentação crítica durante a 12a Bienal Internacional do Livro,
em São Paulo, em agosto de 1996